domingo, junho 28, 2009

Science Fiction

O marciano encontrou-me na rua
e teve medo de minha impossibilidade humana.
Como pode existir, pensou consigo, um ser
que no existir põe tamanha anulação de existência?
Afastou-se o marciano, e persegui-o.
Precisava dele como de um testemunho.
Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se
no ar constelado de problemas.

E fiquei só em mim, de mim ausente.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, junho 17, 2009

Agamêmnon: Prólogo (vv. 1- 35)

Aos Deuses peço: afastem estas fadigas,
a vigilância de longo ano, quando deitado
nos tetos dos Atridas como um cão
conheço a ágora dos astros noturnos
e os que dão inverno e verão aos mortais,
claros príncipes a brilhar no firmamento,
astros, ao desaparecerem e ascedentes.
Agora aguardo o sinal do lampejo,
a luz do fogo a trazer voz de Tróia
e notícia da captura, tal é o poder
do viril coração expectante da mulher.
Quando tenho o meu leito noctívago
e orvalhado sem a visita de sonhos
pois o pavor em vez do sono assiste
sem fechar pálpebras firmes no sono,
choro e gemo a conjuntura desta casa
não como antes a mais bem servida.
Agora seja feliz afastamento de fadigas,
ao surgir nas trevas o fogo mensageiro.
Salve, ó luzeiro da noite, anúncio
de diurna claridade e de muitos coros
compostos em Argos por esta conjuntura
Ioú, Ioú,
assinalo claro à mulher de Agamêmnon:
ergue-te do leito e já eleva pelo palácio
o alarido alácre por este lampejo,
se está capturada a fortaleza de Ílion
como o clarão se mostra mensageiro.
Por mim mesmo dançarei o prelúdio
pois farei os bons lances dos soberanos
quando o clarão me deu triplos seis.
Que possa na vinda tomar nesta mão
a mão amigga do senhor do palácio!
O mais calo. Grande boi na língua
pisou. A casa mesma, se tivesse voz,
falaria bem claro como eu adrede
a quem sabe falo e aos outros oculto.

Tradução de Jaa Torrano

ÉSQUILO. Orestéia I: Agamêmnon. Estudo e tradução: Jaa Torrano. São Paulo, Iluminuras, 2004.

sábado, junho 13, 2009

Édipo-Rei, 1186-1222; 1524-1530

Estirpe humana,
o cômputo do teu viver é nulo
Alguém já recebeu do demo um bem
não limitado a aparecer
e a declinar
depois de aparecer?
És paradigma,
o teu demônio é paradigma, Édipo:
mortais não participam do divino.

Com a hipérbole do arco,
lograste o plenifausto
do bom-demônio.
Por Zeus!
Tu abateste a Esfinge,
- a virgem de unhas curvas! -
com seu canto-vaticínio.
Em prol da pátria então se ergueu
uma torre contra Tânatos.
E houve o clamor (também clamei):
Basileu!
Te coube a distinção extrema:
reinar em Tebas, a magnífica!

Quem tem reputação mais triste agora?
Quem sofre tanta dor, tão dura agrura,
no revés da vida?
Ínclito chefe, Édipo!
Um só porto, um único
bastou ao pai e ao filho
no serviço das núpcias -
cair, subindo ao tálamo.
Como o campo semeado pelo pai,
silente, te acolheu por tanto tempo?

Malgrado teu,
a pan-visão de Cronos te descobre:
faz muito julga núpcias anti-núpcias -
o gerar e o gerado.
Filho de Laio,
jamais quisera ver-te!
Lamento sem limite:
da boca saem-me nênias.
Serei veraz: me deste alento,
na escuridão meus olhos adormeço.

(...)

Olhai o grão-senhor, tebanos, Édipo,
decifrador do enigma insigne. Teve
o bem do Acaso - Týkhe -, e o olhar de inveja
de todos. Sofre à vaga do desastre.
Atento ao dia final, homem nenhum
afirme: eu sou feliz!, até transpor
-sem nunca ter sofrido - o umbral da morte.

Trajano Vieira

VIEIRA, T.Édipo-Rei de Sófocles. São Paulo: Perspectiva. 2005.

quarta-feira, junho 10, 2009

Aqui, sem outro Apolo do que Apolo,
Sem um suspiro abandonemos Cristo
E a febre de buscarmos
Um deus dos dualismos.

E longe da cristã sensualidade
Que a casta calma da beleza antiga
Nos restitua o antigo
Sentimento da vida.

Ricardo Reis

sexta-feira, junho 05, 2009

Os jogadores de xadrez

Ouvi dizer que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade,
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sabiamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Trespassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa vitória próxima,

Inda que no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
a retirada da rainha alta,
Pouco importa a vitória.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo os filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, e sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
a um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo de xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa,pois não é nada...

Ah, sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo de xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem,cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
Sua indiferença.

1-6-1916

Ricardo Reis

Horácio, III. 2

Angustam amice pauperiem pati
robustus acri militia puer
condiscat et Parthos ferocis
uexet eques metuendus hasta

uitamque sub diuo et trepidis agat
in rebus. Illum ex moenibus hosticis
matrona bellantis tyranni
prospiciens et adulta uirgo

suspiret, eheu, ne rudis agminum
sponsus lacessat regius asperum
tactu leonem, quem cruenta
per medias rapit ira caedes.

Dulce et decorum est pro patria mori:
mors et fugacem persequitur uirum
nec parcit inbellis iuuentae
poplitibus timidoue tergo.

Virtus, repulsae nescia sordidae,
intaminatis fulget honoribus
nec sumit aut ponit securis
arbitrio popularis aurae.

Virtus, recludens inmeritis mori
caelum, negata temptat iter uia
coetusque uolgaris et udam
spernit humum fugiente pinna.

Est et fideli tuta silentio
merces: uetabo, qui Cereris sacrum
uolgarit arcanae, sub isdem
sit trabibus fragilemque mecum

soluat phaselon; saepe Diespiter
neglectus incesto addidit integrum,
raro antecedentem scelestum
deseruit pede Poena claudo.


Robusto moço na milícia forte
Aveze-se à pobreza estreita, amigos;
E com a lança temível cavaleiro
Vexe os ferozes partos;

Viva ao relento, e em trepidos trabalhos:
A ele das hostis muralhas vendo
A matrona do rei beligerante
Suspire, e a adulta virgem:

Ah! não provoque o régio esposo, rude
Nas guerras, ao leão, feroz se o tocam;
A quem cruentas iras arrebatam
Por meio das matanças.

Pela pátria morrer é doce, e honroso.
Segue a morte o varão também, que foge;
Nem aos moços perdoa, que covardes
Timídas costas voltam.

A virtude com não manchadas honras
De sórdida repulsa isenta, brilha;
Nem de aura popular a arbítrio toma,
Ou depõe as machadas.

Abrindo o ceú aos que morrer não devem
Tenta a virtude insólito caminho;
Turba vulgar e úmida terra engeita
Com as fugitivas azas.

Tem o fiel silêncio também prêmio
Seguro: quem revela o sacrifício
Da arcana Ceres, não consinto, viva
Na mesma casa, ou solte

Comigo o batel frágil; ofendido
Os bons aos maus ajuntou às vezes Jove;
Raras vezes a pena com pé tardo
Deixou inulto o crime.