segunda-feira, agosto 31, 2009

Hino Homérico XVI - A Asclépio

Médico de doenças Asclépio começo a cantar,
filho de Apolo, que divina Koronis engendrou
na Dótia planície, a filha do Rei Flégias.
Grande alegria para os homens, de males dolentes apaziguador.
Salve, tu também, soberano: suplico a ti com o canto.

Tradução: Rafael Brunhara

sexta-feira, agosto 28, 2009

Hino Homérico XXV: Às Musas e Apolo

Que pelas Musas eu comece e por Apolo e Zeus.
Pelas Musas e pelo flechicerteiro Apolo
homens aedos sobre a terra há e citaristas
e por Zeus reis. Feliz quem as Musas
amam: doce lhes flui da boca a voz.
Salve, filhas de Zeus, e honrai minha canção
Depois eu vos lembrarei também em outra canção.

Tradução: Rafael Brunhara

Os versos 2-5 encontram-se também na Teogonia de Hesíodo, vv. 94-97, na tradução de Jaa Torrano:

Pelas Musas e pelo golpeante Apolo
há cantores e citaristas sobre a terra,
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz.

(Tradução de Jaa Torrano, in:
Teogonia. A origem dos Deuses. São Paulo Iluminuras, 2006)

Hino Homérico XII: A Hera

Hera canto auritrônia a quem Reia engendrou
de imortais a rainha,tendo suprema formosura.
de Zeus trovejante é irmã e esposa
gloriosa, a quem todos os venturosos no vasto Olimpo
venerando honram qual Zeus jubiloso do raio.

Tradução: Rafael Brunhara

quinta-feira, agosto 27, 2009

Píndaro, 8º Pítica, 135- 137

Por dia, que é quem e que ninguém? Sonho de sombra
o homem, mas quando claridade por Zeus dada vem
límpido brilho há nos homens e doce é a vida.

Tradução: Jaa Torrano.

Fonte: TORRANO, J. O Sentido de Zeus. São Paulo: Iluminuras. 1996.

Ilíada VIII, 1-27

Tradução de Jaa Torrano:

Aurora de cróceo manto espalha-se por toda a terra.
Zeus fez a reunião dos Deuses jubiloso do raio
no altíssimo vértice do multicimoso Olimpo.
Ele mesmo lhes falou, os Deuses todos escutaram:
- Ouvi-me, todos os Deuses e todas as Deusas,
que eu diga o que o ânimo no peito me impele:
nenhum Deus feminino nem nenhum masculino
tente cortar minha palavra, mas juntos todos
atendei para que rápido eu perfaça estas ações.
Quem eu perceber longe dos Deuses com intenção
de ir em socorro ou de troianos ou de dânaos,
golpeado não em ordem retornará ao Olimpo
ou agarro e arremesso-o ao Tártaro nevoento,
muito longe, onde mais fundo sob o chão é precipício,
onde são férreas as portas e brônzea a soleira,
tão abaixo de Hades quanto Céu é longe da Terra:
saberá então quanto sou supremo dos Deuses todos.
Eia! tentai já, Deuses, para o conhecerdes todos:
áurea cadeia desde o Céu ponde suspensa
e todos os Deuses pendei-vos e todas as Deusas
mas não puxaríeis desde o Céu para o chão
a Zeus sumo mestre nem se muito vos fatigásseis;
mas quando também eu árdego anuísse a puxar
com a terra mesma puxaria e com e mar mesmo,
a cadeia então ao redor do pico do Olimpo
eu ataria e tudo aliás ficaria nas alturas,
tanto sou superior a Deuses e superior a homens.

Fonte: TORRANO, J. O Sentido de Zeus. São Paulo: Iluminuras, 1996.

Tradução de Haroldo de Campos


A Aurora abrira o peplo amarelo-açafrão
por sobre toda a terra. Zeus Fulgurador
convoca em assembléia os numes no mais alto
cimo do Olimpo, multiescarpado. Ele fala
e,submissos, os outros o escutam: "Ouvi-me,
deuses e deusas,vou dizer-lhes o que manda
meu coração; ninguém, deus ou deusa,descumpra
meu ditame, antes, todos me obedeçam, para
que eu possa dar um termo rápido a esta empresa;
aquele que, afastado dos demais, eu veja
vivamente voltado a socorrer os Tróicos
ou os Dânaos, ao céu olímpio voltará
sob aguilhão, em mau estado, se eu ao fosco
Tártaro não decida, de pronto, arrojá-lo,
no fundo mais profundo onde se abisma o báratro
sob a terra; onde o férreo portal e o limiar
de bronze distam do Hades tanto quanto o céu
da terra. Vereis quão grande é o meu poder. Caso
queirais fazer a prova, suspendei do céu
uma corrente de ouro. Pendurados dela,
tentai, deuses e deusas juntos, das alturas
puxar Zeus soberano para a terra. Mesmo
com todo o esforço, não conseguireis fazê-lo,
enquanto, se eu quiser, a todos puxarei
e ainda, de arrasto, levo a terra e o mar talásseo.
Num píncaro do Olimpo prendendo a cadeia
áurea, farei que tudo fique à solta no ar,
pênsil meteoro. Tanto excedo deuses e homens!"

FONTE: CAMPOS, H. Ilíada de Homero. São Paulo: Arx. 2002.

Hino Homérico XI: A Atena

Palas Atena salva-cidade começo a cantar
Deusa terrível, a ela com Ares concerne trabalhos de guerra
cidades arrasadas, o reboar da guerra, os combates;
Também salva a tropa que parte e retorna;
Salve, Deusa, dá-nos sorte e felicidade.

Trad. Rafael Brunhara

Hino Homérico X: A Afrodite

Ciprogênia Citereia cantarei, que aos mortais
dons melífluos concede: na desejável face
sempre sorri e percorre-lhe a flor do desejo.
Salve, Deusa, de Salamina bem-construída a guardiã
e de toda a Chipre: Concede-me a desejosa canção.
E depois também de ti me lembrarei em outra canção.

Trad. Rafael Brunhara

Hino Homérico XIII: A Deméter

Deméter de bela coma sacra Deusa começo a cantar,
ela mesma e sua filha super-bela Perséfone.
Salve, Deusa, esta cidade guarda, principia o canto.

Trad. Rafael brunhara

quarta-feira, agosto 26, 2009

Hino Homérico XVIII: A Hermes

Hermes celebro, Cilênio Argicida
De Cilene guardião e Arcádia de mil rebanhos
núncio de imortais próvido que Maia
filha de Atlas a Zeus em amor unida venerável
engendrou: de venturosos Deuses evita companhia
habitando antro umbroso, onde Cronida
à ninfa de belas tranças unia-se no apogeu da noite
enquanto doce sono tinha à Hera bracinívea,
oculto a Deuses imortais e homens mortais.
[Assim saúdo-te, Filho de Zeus e Maia
Ao principiar por ti, passarei a outro hino.]
Salve, Hermes caridoso Mensageiro dador de bens.

Bíon de Esmirna - Idílio I: à morte de Adônis

Eu choro a Adonis: morreu o belo Adonis,
Belo Adonis morreu: comigo choram
Os Amores: não durmas mais, ó Vênus,
Em teu leito de púrpura; mesquinha,
Ergue-te, veste luto, e os peitos fere;
A todos brada: É morto o belo Adonis.
Eu choro a Adonis, e os Amores choram;
Jaz Adonis formoso nesses montes
Com a cândida coxa trespassada
Do alvo dente: ele agoniza, e enche
Vênus de dor; por sua nívea carne
O rubro sangue mana, e se entorpecem
Os olhos sob as pálpebras: a rosa
De seus lábios já foge, e já com ele
Morre também o ósculo, que Vênus
Nunca mais deixará: é grato a Vênus
O ósculo, bem que ele já não viva,
Porém o triste Adonis moribundo
Já não sente, que a Deusa o está beijando.
Eu choro a Adonis, e os Amores choram.
Atroz, atroz ferida tem na coxa
Adonis: mas maior no peito Vênus.
Ululam junto dele os cães diletos
E as Oréades Ninfas o pranteiam;
A mesma Vênus, os cabelos soltos,
Por esses bosques vaga, mui dorida,
Desornada e descalça: as feras Sarças
Ferem-lhe os pés, por onde vai, e vertem
Seu sangue divinal; co' agudas vozes
Chorando corre longos vales; busca
bradando o Assírio Esposo, e o moço chama.
Junto do ventre negro sangue a Adonis
Altamente rompia, e desde a coxa
Se ensanguentava o peito, e as costas, antes
Níveas, de cor púrpurea se tornaram:
Ai! Ai! ó Vênus, os Amores choram,
Ela perdeu um belo Esposo, e logo
A sacra formosura; porque enquanto
Viveu Adonis, formosura rara
era a de Vênus: com Adonis morre
Ai! Ai! A formosura da alma Vênus.
Todos os montes e carvalhos dizem:
Ai de Adonis: e os rios vão carpindo
A dor de Vênus; toda a fonte chora
pelos montes a Adonis; as boninas
se tornam de dor roxas: triste Vênus
Por vales todos e Cidades clama:
Ai! Vênus,ai! Morreu o belo Adonis.
E com triste clamor ressoa o eco:
Morreu o belo Adonis. Quem não chora
Ai! Ai! o fero amor de Vênus! tanto
Que da flácida coxa viu manando
Púrpureo sangue, os braços estendendo
Com gemidos bradava: espera, Adonis,
Mísero Adonis, ah! espera, possa
Eu inda achar-te, e ter-te nos meus braços,
E ajuntar os meus lábios aos teus lábios.
Acorda por um pouco, Adonis, dá-me
Um ósculo por fim, que de tua alma
À minha boca, e ao meu peito corra
Esse teu esp'rito, teu amor suave
Nos beiços tomarei; beberei neles
O teu amor; eu guardarei o beijo,
Como se fosse Adonis, pois me foges
Mesquinho; e foges para longe, Adonis,
E te vais a Aqueronte, e ao incompassivo
E triste Rei; mas eu infeliz vivo,
E sou Deusa, e nem dado me é seguir-te.
Meu esposo recebe, ó Proserpina,
Pois inda mais do que eu, és poderosa;
E quanto há bom no mundo, a ti se torna.
Eu sou muito infeliz, que me atormento
Com nunca exausta dor o meu Adonis
Chorando, que morreu, e a ti te temo.
Ó mais que todos suspirado Adonis,
Tu morres, e o amor, bem como um sonho,
De mim voou: está viúva Vênus,
E os Amores em casa estão viúvos.
Já contigo acabou meu cesto, Adonis;
E por que caçavas temerário?
Sendo tu tão gentil, com as bravas feras
Brigar ousaste? Assim chorava Vênus,
Assim choravam os Amores juntos.
Ai de Vênus! Morreu o belo Adonis,
E Vênus tantas lágrimas derrama,
Quanto de sangue derramou Adonis.
As lágrimas, e sangue desparzido
Em terra, em flores se convertem: gera
O sangue a rosa, as lágrimas a anêmone.
Choro a Adonis; morreu o belo Adonis.
Não mais chores na selva o esposo, ó Vênus:
Bem preparado está o toro a Adônis,
Aparelhado o toro tem decente.
Esse teu mesmo leito o morto Adonis
Ocupe, ó Vênus; bem que esteja morto,
É inda belo, como que adormece:
Ali, n'áureo coxim o deposita
Nas moles vestes, com que se deitava,
E contigo de noite o sacro sono
Dormia: a Adonis ama, inda que esteja
Com triste aspecto; e o põe entre grinaldas,
E flores; também flores, dês que Adonis
Morreu, com ele todas se murcharão.
Tu o banha com mirtos, com diversas
Espécies de óleo, com aromas unge,
Acabe todo o aroma, o teu Adonis
Acabou. Jaz deitado o tenro Adonis
No manto de escarlata: junto dele
Chorando gemem os Amores todos,
Cortados os cabelos, por Adonis:
Um calca as setas, outro calca o arco;
Um quebra a aljava de farpões prenhada;
De Adonis outro os borzeguins desata;
Este água em áureos vasos traz; aquele
As coxas lava, e aquel'outro a Adonis
Posto detrás com as asas refrigera:
Co' a mesma Vênus os Amores choram.
No lumiar da porta o facho todo
Himeneu apagou; rompeu a c'roa
Nupcial; e não mais, ó Hímen, Hímen,
Não mais a cantilena é já que soa,
Porém, Ai, ai! Ai, ai! morreu Adonis,
Acabou Himeneu. As Graças choram
O filho de Cinira; entre si dizem:
Morreu o belo Adonis; dizem isto
Com mais aguda voz, que tu, Dione,
Choram a Adonis, té as Parcas choram
A Adonis, e co'canto à vida o chamam;
Mas não as ouve; não porque assim queira,
Porém que o não sofre Proserpina.
Põe fim, ó Citeréa, aos teus lamentos;
E ora assiste aos joviais banquetes;
Pois tens segunda vez de prantear-te,
E n'outro ano chorar de novo a Adonis.

Tradução de Elpino Duriense.

Fonte: SANTOS, Antonio Ribeiro. Poesias de Elpino Duriense. Imprensa régia, 1812.

Hino Homérico XXIII - A Zeus

Zeus dos Deuses o melhor e o maior cantarei
Altitroante regente perfectivo, ele com Justiça
que se senta reclinada sólidas conversas confabula.
Sê propício, Altitroante Cronida mais glorioso e o maior.

Trad. Rafael Brunhara

segunda-feira, agosto 24, 2009

Hino Homérico VI a Afrodite

Venerável auricoroada bela Afrodite
cantarei,patrona dos muros de toda a Chipre
marinha, onde a ela fluida força de Zéfiro a bafejar
suspende às ondas do undíssono mar
em espuma suave: a ela Horas de áureos laços
acolheram e dispuseram-lhe em imorredouras vestes
e sobre fronte imortal bem feita coroa colocaram
bela, áurea: em suas orelhas perfuradas
flores de oricalco, valioso e áureo;
à volta do tenro colo e peito com luziargênteos
colares em ouro adornavam - com que até as Horas
mesmas de áureos laços estão adornadas quando vão
ao desejável coro dos deuses e à mansão paterna.
E depois que os adornos todos por seu corpo colocaram
conduzem-na aos imortais e eles a veem e saúdam
com as mãos, acolhem e cada qual roga
havê-la por esposa legítima e conduzí-la ao lar
espantados com a formosura de Citereia de coroa violácea.
Salve, de vivazes olhos Deusa doce-mel: concede-me em disputa
levar a vitória, compõe minha canção,
e depois também de ti me lembrarei em outra canção.

Trad.Rafael Brunhara

domingo, agosto 23, 2009

Ifigênia em Áulis, vv. 443-467

Agamêmnon

Oimoi! Infeliz! O que dizer? Como começar?
Tombo ao jugo da necessidade!
Embaiu-me um nume, ao revelar-se
muito mais hábil que sofismas meus.
Quão vantajoso ter uma baixa origem:
pode à vontade chorar pelos seus,
pode dizer quaisquer coisas. Ao nobre,
isso é desventura; anteposto à vida,
o povo: somos servos da multidão.
É vergonha verter lágrimas,
Mas outra mísera vergonha não vertê-las
ao se chegar a uma situação extrema!
Eia! E o que dizer à minha esposa ?
Como acolhê-la? Com que olhos a fitarei?
Ela sobrevém sem chamado à presença de meus males:
assim destruiu-me. Mas também seguira a filha
com razão – para noivá-la e dar-lhe os mais amáveis
dons – aonde me encontrará brutal.
E da mísera donzela, (por que dizer donzela?
Creio que em breve será noiva de Hades)
como apiedo-me! Penso que me suplicará assim:
“Pai! Vais me matar? Ah, me casasse o senhor
em tais núpcias e também um que lhe fosse amigo!
E Orestes presente ao lado clamará
ininteligível inteligíveis palavras: ainda é uma criança.
Aîai, como destruíram-me as núpcias de Helena!
Páris de Príamo, ao casar-se, empreendeu tais coisas!

sexta-feira, agosto 21, 2009

Hino Homérico XXVI - A Dioniso

Hederícrine Dioniso magnifremente começo a cantar
de Zeus e de Sêmele magnissigne o esplêndido filho
que nutriam as Ninfas de belos cabelos que do Rei Pai
acolheram-no em seus seios e cuidadosas criavam
nos vales do Jovem e ele cresceu por vontade do Pai
em bem olente gruta conumerário entre os imortais
e quando as Deusas o nutriram multi-hineado
então pervagava através de arborosas moradas
na hera e na laurácea condensado. Elas seguem juntas
Ninfas, ele as guia e fremente tem a inefável selva.
Tu, assim te saudamos, ó multicacheado Dioniso,
dá-nos por te saudarmos, às Sazões outra vez virmos
e das Sazões outra vez nos múltiplos círculos.

Tradução de Jaa Torrano

FONTE: TORRANO, J. O Sentido de Zeus, o Mito do Mundo e o Modo Mítico de Ser no Mundo. Iluminuras, 1996.

quinta-feira, agosto 20, 2009

Prólogo de Bacas, vv. 01 - 63 - Três traduções

Dioniso:

Venho a esta terra tebana, filho de Zeus,
Dioniso, que nasce da filha de Cadmo,
Sêmele, partejada por relampeado fogo.
Troquei a forma de Deus pela humana,
presente às águas de Dirce e às de Ismeno.
Vejo monumento à minha mãe fulminada
lá perto das casas e ruínas do palácio
a fumarem chama ainda viva do fogo de Zeus,
imortal agressão de Hera à minha mãe.
Louvo Cadmo que tornou intocável este chão,
o recinto da filha; eu o cobri todo
ao redor com o cacheado verdor da videira

Deixei auríferos hectares lídios e frígios
percorri planaltos pérsios sob forte sol,
muralhas báctrias, a terra tempestuosa
dos medos, a Arábia de bom Nume
e toda a Ásia deitada à beira do salso mar
com as suas bem torreadas cidades
cheios de gregos e bárbaros mesclados,
e vim a esta cidade dos gregos primeiro.

Também lá fiz coros e instituí mistérios
meus, para manifestar-me Nume aos mortais.
Primeiro em Tebas nesta terra grega
alarideei e atei a nébrida ao corpo
e nas mãos pus o tirso, hederoso dardo;
pois irmãs de minha mãe, as que menos deviam,
diziam que Dioniso não surgiu de Zeus,
que Sêmele, feita mulher por algum mortal,
atribuiu a Zeus o desacerto com o leito,
sofismas de Cadmo, assim Zeus a matou
porque mentiu núpcias, alardeavam elas.
Por isso, de suas casas eu as aguilhoei
com a loucura e habitam a montanha aturdidas.
Obriguei-as a ter paramentos de meus trabalhos,
e toda a fêmea semente, quantas cadméias
havia, enlouqueci em seus lares:
junto com as filhas de Cadmo misturadas
sob verdes abetos correm por pedras sem teto.
Deve esta cidade saberm ainda que não queira,
que não está iniciada em meus Baqueumas,
e devo pronunciar a defesa de mãe Sêmele
manifesto aos mortais Nume que ela deu a Zeus.
Cadmo outorga o privilégio e o poder
a Penteu, rebento de sua filha Agave.
Este combate o Deus em mim e repele-me
das libações, nem de mim se lembra nas preces.
Por isso mostrar-lhe-ei que Deus nasci
e aos tebanos todos. Após bem me pôr aqui
voltarei o pé para uma outra terra
a mostrar-me. E se a cidade tebana irada
tentar com armas expulsar da montanha
as Bacas, atacarei chefiando as Loucas.
Por isso alterado tenho aspecto de mortal
e minha forma transmutei em ser humano.
Ó vós que deixastes Tmolo abrigo da Lídia,
eia! Tíaso meu, mulheres que dos bárbaros
conduzi sequazes das pousadas e percursos,
erguei os tamborins nativos da cidade
dos frígios, invenção de mãe Réia e minha,
vinde ao redor do régio palácio de Penteu
e percuti, para que o povo de Cadmo veja.
Eu com as Bacas às dobras do Citéron
irei onde estão e participarei dos coros.

Tradução de Jaa Torrano

Fonte: EURÍPIDES. Bacas. Tradução e estudo de Jaa Torrano. São Paulo: Hucitec, 1993.


Dioniso:

Deus, filho de Zeus, chego a Tebas ctônia,
Dioniso. Deu-me à luz Semele cádmia.
O raio - Zeus porta-fogo - fez-me o parto.
Deus em mortal transfigurado, achego-me
ao rio Ismeno, ao minadouro dírceo.
Avisto o memorial de minha mãe
relampejada junto ao paço. Escombros
de sua morada esfumam com o fogo,
ainda flâmeo, de Zeus, ultraje eterno
de Hera contra Semele. Louvo Cadmo:
sagrou à filha o espaço não-pisado,
que circum-ocultei com verdes vinhas
em cachos. Deixo Lídia e Frígia pluri-
-áureas; plainos da Pérsia calcinados;
Báctria emurada; a Média, terra gélida;
Arábia venturosa; pleniaberta
ao mar salino, a Ásia, onde, em tantas urbes
de torres multilindas, grego e bárbaro
compunham gigantesco aglomerado.
Na Grécia, por aqui me introduzi.
Fundei meu rito em coros dançarinos:
um deus-demônio, ao homem manifesto.
À trra dos tebanos vim primeiro.
A pele nébrida ajustei aos corpos
sobreululando, o tirso e o dardo de hera
dei-lhes. Me denegriu quem não devia,
as minhas tias maternas: "Não é deus
Dioniso! Não é filho de Zeus! Grávida
de outro qualquer, Semele o inculpou pela
própria falta." Sofismam, como Cadmo:
a mãe falsária, Zeus, então, matara-me!
Eis a razão de eu, para o monte, atraí-las,
maníacas de furor, fêmeas frenéticas.
Fêmeas tebanas portam, todas elas
forçadas, paramentos para a orgia,
tresloucadas, dos lares, todas, extra-
-ditadas, turba entremesclada às Cádmias,
sob o cloroso abeto, sobre as pedras.
Malgrado seu, aprenda a cidadela
não ter sido iniciada em meus baqueus.
Da mãe Semele faço a apologia:
mostro-me um deus-demônio, o sêmen nela
de Zeus. Cadmo a Penteu, filho de uma outra
filha, outorga o apanágio de tirano-
-rei. Contra mim, Penteu move uma teo-
-maquia: libações me nega e preces.
Por isso eu lhe indigito minha origem
divina e a Tebas toda. Implanto aqui
o rito, e os pés, alhures, logo movo
em minha epifania. Mas se em furor
de hoplita a pólis planejar tirá-las
do pico, eu lutarei, chefiando as loucas.
Por isso, num mortal me transfiguro,
a forma antiga em natureza humana.
Atrás de nós ficou a serra tmólia,
baluarte lídio, ó fêmeas do meu tíaso,
companheiras de périplo e repouso!
Alçando frígios tímpanos, ó bárbaras,
invento de Mãe-Réia, meu próprio invento,
circundai a morada basiléia,
ressoai - que o presencie a pólis de Cadmo!
Assim, voltando ao Ptýks, reentrância do
Citero, me reintegro ao coro báquico.

Tradução de Trajano Vieira

Fonte: VIEIRA, T. As Bacantes de Eurípides. São Paulo: Perspectiva. 2003.


Diôniso

Estou aqui, chegando à terra dos tebanos,
eu, o próprio Diôniso, filho de Zeus,
que há muitos anos a filha do antigo Cadmo,
Semele, trouxe ao mundo graças ao fulgor
de um divino relâmpago vindo das nuvens.
Tomei a forma humana para freqüentar
as nascentes de Dirce e as águas do Ismeno.
Já posso ver junto ao palácio a sepultura
de minha mãe - pobre Semele! - fulminada
por um raio e as ruínas de sua morada
ainda fumegantes do fogo de Zeus,
testemunho perene da vingança de Hera
e um violento insulto à minha amada mãe.
É meu dever também agradecer a Cadmo
por haver feito deste solo, inviolável
aos passos dos mortais, o altar de sua filha,
que vim cercar de videiras cheias de uvas.
Cruzei a Lídia e sua terra aurífera
e as planícies da Frígia e viajei
para os ensolarados planaltos da Pérsia,
e a Bactriana com suas muralhas altaneiras,
e a Média, gelada durante o inverno,
e até o extremo da Arábia Feliz,
e toda a Ásia, enfim, cujo limite
são as ondas salgadas, com suas cidades
cercadas por belas muralhas, onde gregos
se misturaram com diversas raças bárbaras.
A primeira cidade grega que visito
é esta aqui. Em muitas regiões distantes
organizei meus coros, implantei meus ritos,
para manifestar-me aos homens como um deus.
A minha preferida entre as cidades gregas
é Tebas, onde já se ouviram meus clamores.
As mulheres tebanas, mais fiéis a mim,
já se dispõem a vestir peles de corças,
e pus em suas mãos o tirso, este dardo
ornado com ramos de hera sempre verdes.
De fato, as irmãs de minha querida mãe,
que em primeiro lugar deviam poupar-me
de tal insulto, declararam que eu, Diôniso,
não sou filho do grande Zeus e que Semele,
ludibriada por um amante mortal
e mal aconselhada pelo próprio Cadmo,
havia atribuído seu pecado ao deus.
Em altos brados elas proclamavam que,
se Zeus a fulminou, foi para castigá-la
por ter tido a idéia de vangloriar-se
de amores com um deus. Por isso compeli
todas as mulheres de Tebas a deixarem
seus lares sob o aguilhão do meu delírio.
E agora, vítimas de mente transtornada,
elas passaram a morar nos altos montes,
usando apenas a roupagem orgiástica.
Longe de suas casas e como dementes,
elas misturam-se com as filhas de Cadmo
em cima dos rochedos e sob os pinheiros
perenemente verdes. Mesmo constrangida,
esta cidade terá de reconhecer
a grande falta que lhe fazem minhas danças
e meus mistérios, para que eu possa vingar
a honra de Semele, minha amada mãe,
aparecendo aqui a todos os mortais
como o deus que ela um dia concebeu e teve,
depois de unir-se a Zeus. E Cadmo transmitiu
suas reais prerrogativas a Penteu,
filho de sua filha, que faz contra mim
guerra constante à minha condição divina.
Ele sempre me exclui de suas libações
e nunca diz meu santo nome em suas preces.
Mas poderei provar-lhe e provar aos tebanos
que fui realmente gerado por um deus.
Depois de acertar tudo como quero aqui,
dirigirei meus passos a outros lugares
e me darei a conhecer por toda a parte.
Mas se a cidade dos tebanos, tresloucada,
tentar trazer do cume dos montes mais altos
minhas Bacantes recorrendo à força bruta
e às armas, então marcharei com minhas tropas
de Mênades enfurecidas contra Tebas.
Com esta intenção apareci aqui
como se fosse um dos mortais e transformei
em corpo humano minha condição divina.
Vamos, vós, que preferistes deixar o Tmolo,
a muralha da Lídia, vós, componentes
de meu cortejo, minhas queridas mulheres
que me acompanham sempre desde as terras bárbaras,
vós todas que morais e caminhais comigo,
vós que agitai os tamborins feitos na Frígia
(uma invenção de Réa, a Grande Mãe, e minha).
Vinde e ficai junto ao palácio de Penteu,
tocando-os para atrair sobre vós mesmas
a curiosidade de Tebas Cadméia,
enquanto, sempre ao lado de nossas Bacantes,
conduzirei seus coros até o sopé
do altíssimo Citéron, onde ficaremos.


Tradução de Mário da Gama Kury


Fonte: EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, As Fenícias, As Bacantes. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1993.

Persas 384-432: A Batalha de Salamina

A noite avançava, e o exército dos gregos
não tentava nenhuma escapada furtiva.
Quando, porém, o dia de brilhantes potros
cobriu a terra toda, radioso a quem vê,
primeiro a ecoar o clamor dos gregos
inaugurava cantando, e com estrídulo
alarido respondeu o eco do rochedo
da ilha. O pavor veio a todos os bárbaros
frustrados da expectativa, pois não em fuga
os gregos então hineava o solene peã,
mas em marcha de guerra com viva audácia
o clarim a gritar vibrava em todos ao redor.
Logo, batendo junto aos remos rumorosos,
golpearam fundo o mar, cadenciados,
e rápido todos surgiram visíveis.
A ala direita primeiro em seus postos
movia-se em ordem, depois a frota toda
avançava, e simultâneo podia-se ouvir
vasto canto: "Ó filhos de gregos, ide,
libertai vossa pátria, libertai os vossos
filhos, mulheres, templos de Deuses pátrios,
e túmulos dos pais, por todos é o combate."
De nossa parte, o rumor da língua persa
vai de encontro, não era mais hora de hesitar.
Logo navio contra navio bate o aríete
brônzeo, dá início ao combate o navio
grego, e quebra a proa do navio fenício
toda, um contra outro dirige a nave.
Primeiro a torrente do exército persa
resistia, mas como muitos navios atulhavam
o estreito, não se davam recíproco auxílio,
uns com outros colidiam suas brônzeas
proas, quebravam todo o renque de remos;
e os navios gregos, não sem perícia,
em círculo ao redor vulneram e reviram
cascos de navios, não mais se via o mar,
coberto de naufrágios e de morte de mortais,
pontais e recifes estavam cheios de mortos,
remavam em fuga sem ordem todos os navios,
quantos pertenciam ao exército bárbaro.
Como se fossem atuns ou redada de peixes,
com lascas de remos e pedaços de paus
golpeavam, espetavam, e a lamentação
clamorosa cobria a planície do mar,
até que o olho da negra noite removesse.
Tantos males, nem se por dez dias
eu os narrasse, poderia contar todos.
Bem saibas que nunca num único dia
tão numerosa multidão de homens morreu

Tradução de Jaa Torrano in: Letras Clássicas, v. 6, São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

domingo, agosto 02, 2009

Gôngora [1582]

Mientras por competir con tu cabello
oro bruñido al Sol relumbra en vano;
mientras con menosprecio en medio el llano
mira tu blanca frente el lilio bello;
Mientras a cada labio, por cogello,
siguen más ojos que al clavel temprano;
y mientras triunfa con desdén lozano
del luciente cristal tu gentil cuello
Goza cuello, cabello, labio y frente,
antes que lo que fue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,
No ya en plata o víola trocada
se vuelva, mas tú y ello juntamente,
en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada.

A Perfeição

I
SENTADO numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos, de onde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que, mansa e harmoniosamente, rolava sobre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias, que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do Egipto. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam os Deuses marinhos.
A divina Ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes eternas dourando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos Zéfiros curiosos, que brincam e correm por sobre o Arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram duma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas voando dos ciprestes aos plátanos e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia. E nesta inefável paz e beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração...
Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao mastro partido, trambolhara na braveza mujidora das espumas sombrias, durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e o amara! E durante esses imensos anos, como se arrastara a sua vida, a sua grande e forte vida, que, depois da partida para os muros fatais de Tróia, abandonando entre lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu pequenino Telémaco enfaixado no colo da ama, andara sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos?... Ah! ditosos os Reis mortos, com formosas feridas no branco peito, diante das portas de Tróia! Felizes os seus companheiros tragados pela onda amarga! Feliz ele se as lanças troianas o trespassassem nessa tarde de grande vento e poeira, quando, junto à Faia, defendia dos ultrajes, com a espada sonora, o corpo morto de Aquiles! Mas não! vivera! E agora, cada manhã, ao sair sem alegria do trabalhoso leito de Calipso, as Ninfas, servas da Deusa, o banhavam numa água muito pura, o perfumavam de lânguidas essências, o cobriam com uma túnica sempre nova, ora bordada a sedas finas, ora bordada de ouro pálido! No entanto, sobre a mesa lustrosa, erguida à porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao sussurro dormente dum arroio diamantino, os açafates e as travessas lavradas transbordavam de bolos, de frutas, de tenras carnes fumegando, de peixes cintilando como tramas de prata. A intendenta venerável gelava os vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E ele, sentado num escabelo, estendia as mãos para as iguarias perfeitas, enquanto ao lado, sobre um trono de marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a claridade e o aroma do seu corpo imortal, sublimemente serena, com um sorriso taciturno, sem tocar nas comidas humanas, debicava a ambrósia, bebia em goles delgados o néctar transparente e rubro. Depois, tomando aquele bastão de Príncipe de Povos com que Calipso o presenteara, repercorria sem curiosidade os sabidos caminhos da Ilha, tão lisos e tratados que nunca as suas sandálias reluzentes se maculavam de pó, tão penetrados pela imortalidade da Deusa que jamais neles encontrara folha seca, nem flor menos fresca pendendo da haste. Sobre uma rocha se sentava então, contemplando aquele mar que também banhava Ítaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava, e gemia, até que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e ele recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a Deusa que o desejava!... E durante estes imensos anos, que destino envolvera a sua Ítaca, a áspera ilha de sombrias matas? Viviam eles ainda, os seres amados? Sobre a forte colina, dominando a enseada de Reitros e os pinheirais de Neus, ainda se erguia o seu palácio, com os belos pórticos pintados de vermelho e roxo? Ao cabo de tão lentos e vazios anos, sem novas, apagada toda a esperança como uma lâmpada, despira a sua Penélope a túnica passageira da viuvez, e passara para os braços de outro esposo forte que, agora, manejava as suas lanças e vindimava as suas vinhas? E o doce filho Telémaco? Reinaria ele em Ítaca, sentado, com o branco ceptro, sobre o mármore alto da Agorá? Ocioso e rondando pelos pátios, baixaria os olhos sob o império duro dum padrasto? Erraria por cidades alheias, mendigando um salário?... Ah! se a sua existência, assim para sempre arrancada da mulher, do filho, tão doces ao seu coração, andasse ao menos empregada em façanhas ilustres! Dez anos antes, também desconhecia a sorte de Ítaca, e dos seres preciosos que lá deixara em solidão e fragilidade; mas uma empresa heróica o agitava; e cada manhã a sua fama crescia, como uma árvore num promontório, que enche o céu e todos os homens contemplam. Então era a planície de Tróia - e as brancas tendas dos Gregos ao longo do mar sonoro! Sem cessar, meditava astúcias de guerra; com soberba facúndia discursava na Assembléia dos Reis; rijamente jungia os cavalos empinados ao timão dos carros; de lança alta corria, entre a grita e a pressa, contra os Troianos de altos elmos, que surdiam, em roldão ressoante, das portas Skaias!... Oh! e quando ele, Príncipe dos Povos, encolhido sob farrapos de mendigo, com os braços maculados de chagas postiças, coxeando e gemendo, penetrara nos muros da orgulhosa Tróia, pelo lado da Faia, para de noite, com incomparável ardil e bravura, roubar o Paládio tutelar da cidade! E quanto, dentro do ventre do Cavalo de Pau, na escuridão, no aperto de todos aqueles guerreiros hirtos e cobertos de ferro, calmava a impaciência dos que sufocavam, e tapava com a mão a boca de Anticlos bravejando furioso, ao escutar fora na planície os ultrajes e os escárnios troianos, e a todos murmurava: “Cala, cala! que a noite desce e Tróia é nossa...” E depois as prodigiosas viagens! O pavoroso Polifemo, ludibriado com uma astúcia que para sempre maravilhará as gerações! As manobras sublimes entre Sila e Caríbdis! As Sereias, vogando e cantando em torno do mastro, de onde ele, amarrado, as rechaçava com o mudo dardejar dos olhos mais agudos que dardos! A descida aos Infernos, jamais concedida a um mortal!... E agora homem de tão rutilantes feitos jazia numa ilha mole, eternamente preso, sem amor, pelo amor duma Deusa! Como poderia ele fugir, rodeado de mar indomável, sem nave, nem companheiros para mover os remos longos? Os Deuses ditosos certamente esqueciam quem tanto por eles combatera e sempre piedosamente lhes votara as reses devidas, mesmo através do fragor e fumaraça das cidadelas derrubadas, mesmo quando a sua proa encalhava em terra agreste!... E ao herói, que recebera dos Reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade duma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma Deusa que, sem cessar, o desejava.
Assim gemia o magnânimo Ulisses, à beira do mar lustroso... E eis que, de repente, um sulco de desusado brilho, mais rutilantemente branco que o duma estrela caindo, riscou a rutilância do céu, desde as alturas até à cheirosa mata de tuias e cedros, que assombreava um golfo sereno, a oriente da Ilha. Com alvoroço bateu o coração do herói. Rasto tão refulgente, na refulgência do dia, só um Deus o podia traçar através do largo Ouranos. Um Deus, pois, descera à Ilha?

II

UM Deus descera, um grande Deus... Era o Mensageiro dos Deuses, o leve, eloquente Mercúrio. Calçado com aquelas sandálias que têm duas asas brancas, os cabelos cor de vinho cobertos pelo casco onde batem também duas claras asas, erguendo na mão o Caduceu, ele fendera o Éter, roçara a lisura do mar sossegado, pisara a areia da Ilha, onde as suas pegadas ficavam rebrilhando como palmilhas de ouro novo. Apesar de percorrer toda a terra, com os recados inumeráveis dos Deuses, o luminoso Mensageiro não conhecia aquela ilha de Ogígia - e admirou, sorrindo, a beleza dos prados de violetas tão doces para o correr e brincar das Ninfas, e o harmonioso faiscar dos regatos por entre os altos e lânguidos lírios. Uma vinha, sobre esteios de jaspe, carregada de cachos maduros, conduzia, como fresco pórtico salpicado de sol, até à entrada da gruta, toda de rochas polidas, de onde pendiam jasmineiros e madressilvas, envoltas no sussurrar das abelhas. E logo avistou Calipso, a Deusa ditosa, sentada num Trono, fiando em roca de ouro, com o fuso de ouro, a lã formosa de púrpura marinha. Um aro de esmeraldas prendia os seus cabelos muito anelados e ardentemente louros. Sob a túnica diáfana a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava, como a neve, quando a aurora a tinge de rosas nas colinas eternas povoadas de Deuses. E, enquanto torcia o fuso, cantava um trinado e fino canto, como trémulo fio de cristal vibrando da Terra ao Céu. Mercúrio pensou: “Linda ilha, e linda Ninfa!”
Dum lume claro de cedro e tuia, subia, muito direito, um fumo delgado que perfumava toda a Ilha. Em roda, sentada em esteiras, sobre o chão de ágata, as Ninfas, servas da Deusa, dobavam as lãs, bordavam na seda as flores ligeiras, teciam as puras teias em teares de prata. Todas coraram, com o seio a arfar, sentindo a presença do Deus. E sem deter o fuso faiscante, Calipso reconhecera logo o Mensageiro - pois que todos os Imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos e os rostos soberanos, mesmo quando habitam retiros remotos que o Éter e o Mar separam.
Mercúrio parara, risonho, na sua nudez divina, exalando o perfume do Olimpo. Então a Deusa ergueu para ele, com composta serenidade, o esplendor largo dos seus olhos verdes:
Oh Mercúrio! por que desceste à minha Ilha humilde, tu, venerável e querido, que eu nunca vi pisar a terra? Diz o que de mim esperas. Já o meu aberto coração me ordena que te contente, se o teu desejo couber dentro do meu poder e do Fado... Mas entra, repousa, e que eu te sirva, como doce irmã, à mesa da hospitalidade.
Tirou da cintura a roca, arredou os anéis soltos do cabelo radiante - e com as suas nacaradas mãos colocou sobre a mesa, que as Ninfas acercaram do lume aromático, o prato transbordando de Ambrósia, e as infusas de cristal onde cintilava o Néctar.
Mercúrio murmurou: “Doce é a tua hospitalidade, ó Deusa!” Pendurou o Caduceu do fresco ramo dum plátano, estendeu os dedos reluzentes para a travessa de ouro, risonhamente louvou a excelência daquele Néctar da Ilha. E contentada a alma, encostando a cabeça ao tronco liso do plátano que se cobriu de claridade, começou, com palavras perfeitas e aladas:
Perguntaste por que descia um Deus à tua morada, oh Deusa! E certamente nenhum Imortal percorreria sem motivo, desde o Olimpo até Ogígia, esta deserta imensidade do mar salgado em que se não encontram cidades de homens, nem templos cercados de bosques, nem sequer um pequenino santuário de onde suba o aroma do incenso, ou o cheiro das carnes votivas, ou o murmúrio gostoso das preces... Mas foi nosso Pai Júpiter, o tempestuoso, que me mandou neste recado. Tu recolheste, e reténs pela força incomensurável da tua doçura, o mais subtil e desgraçado de todos os Príncipes que combateram durante dez anos a alta Tróia, e depois embarcaram nas naves fundas para voltar à terra da Pátria. Muitos desses conseguiam reentrar nos seus ricos lares, carregados de fama, de despojos e de histórias excelentes para contar. Ventos inimigos, porém, e um fado mais inexorável, arremessaram a esta tua ilha, enrolado nas sujas espumas, o facundo e astuto Ulisses... Ora o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do teu leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso Júpiter, regulador da Ordem, te ordena, oh Deusa, que soltes o magnânimo Ulisses dos teus braços claros, e o restituas, com os presentes docemente devidos, à sua Ítaca amada, e à sua Penélope, que tece e desfaz a teia ardilosa, cercada dos Pretendentes arrogantes, devoradores dos seus gordos bois, sorvedores dos seus frescos vinhos!
A divina Calipso mordeu levemente o beiço; e sobre a sua face luminosa desceu a sombra das densas pestanas cor de jacinto. Depois, com um harmonioso suspiro, em que ondulou todo o seu peito rebrilhante:
Ah Deuses grandes, Deuses ditosos! como sois àsperamente ciumentos das Deusas, que, sem se esconderem pela espessura dos bosques ou nas pregas escuras dos montes, amam os homens eloquentes e fortes!... Este, que me invejais, rolou às areias da minha Ilha, nu, pisado, faminto, preso a uma quilha partida, perseguido por todas as iras, e todas as rajadas, e todos os raios dardejantes de que dispõe o Olimpo. Eu o recolhi, o lavei, o nutri, o amei, o guardei, para que ficasse eternamente ao abrigo das tormentas, da dor e da velhice. E agora Júpiter trovejador, ao cabo de oito anos em que a minha doce vida se enroscou em torno desta afeição como a vide ao olmo, determina que eu me separe do companheiro que escolhera para a minha imortalidade! Realmente sois cruéis, oh Deuses, que constantemente aumentais a raça turbulenta dos Semideuses dormindo com as mulheres mortais! E como queres que eu mande Ulisses à sua pátria, se não possuo naves, nem remadores, nem piloto sabedor que o guie através das Ilhas? Mas quem pode resistir a Júpiter, que ajunta as nuvens? Seja! e que Olimpo ria, obedecido. Eu ensinarei o intrépido Ulisses a construir uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...
Imediatamente o Mensageiro Mercúrio se levantou do escabelo pregado com prego de ouro, retomou o seu Caduceu e, bebendo uma derradeira taça do Néctar excelente da Ilha, louvou a obediência da Deusa:
Bem farás, oh Calipso! Assim evitas a cólera do Pai trovejante. Quem lhe resistiria? A sua Omnisciência dirige a sua Omnipotência. E ele sustenta como ceptro uma árvore que tem por flor a Ordem... As suas decisões, clementes ou cruéis, resultam sempre em harmonia. Por isso o seu braço se torna terrífico aos peitos rebeldes. Pela tua pronta submissão serás filha estimada, e gozarás uma imortalidade repassada de sossego, sem intrigas e sem surpresas...
Já as asas impacientes das suas sandálias palpitavam, e o seu corpo, com sublime graça, se balançava por sobre as relvas e flores que alcatifavam a entrada da gruta.
De resto acrescentou a tua Ilha, oh Deusa, fica no caminho das naves ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido os Imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha... Acende um facho claro, de noite, nas rochas altas!
E, rindo, o Mensageiro Divino serenamente se elevou, riscando no Éter um sulco de elegante fulgor que as Ninfas, esquecida a tarefa, seguiam, com os frescos lábios entreabertos e o seio levantado no desejo daquele imortal formoso.
Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira duma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia, que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do Herói os seus dedos tão claros como os de Éos, mãe do dia:
Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o Mar! Os Deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos e calques de novo a terra da Pátria.
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:
Oh Deusa, tu dizes...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam... Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar e construíres uma jangada em que embarques... Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado...
O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na Deusa um duro olhar que a desconfiança enegrecia. E erguendo a mão, que tremia toda, com a ansiedade do seu coração:
Oh Deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada as ondas difíceis, onde mal se mantêm fundas naves! Não, Deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os Deuses também combateram, e conheço a malícia infinita que contém o coração dos Imortais! Se resisti às sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras de entre Sila e Caríbdis, e venci Polifemo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, oh Deus, para que, agora, na Ilha de Ogígia, como passarinho de pouca penugem no seu primeiro vôo do ninho,caia em armadilha ligeira arranjada com dizeres de mel! Não, Deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos Deuses, que não preparas, com esses quietos olhos, a minha perda irreparável!
Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o Herói prudente... Então a Deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o Herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez!
Oh maravilhoso Ulisses - disse - tu és, bem na verdade, o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, Deusa, empreenderia, se o Fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!...
O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada caricia dos dedos divinos:
Mas jura... Oh Deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os Deuses moram:
Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, oh homem, Príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores...
O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas:

Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh Deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!
Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os Deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino... Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força... Quando Éos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.

III

ERA, com efeito, a hora em que homens mortais e Deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados e as amoráveis conversas que contentam a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim, que ainda conservava o aroma do corpo de Mercúrio, e diante dele as Ninfas, servas da Deusa, colocaram os bolos, as frutas, as tenras carnes fumegando, os peixes rebrilhantes como tramas de prata. Pousada num Trono de ouro puro, a Deusa recebeu da Intendenta venerável o prato de Ambrósia e a taça de Néctar. Ambos estenderam as mãos para as comidas perfeitas da Terra e do Céu. E logo que deram a oferenda abundante à Fome e à Sede, a ilustre Calipso, encostando a face aos dedos róseos, e considerando pensativamente o Herói, soltou estas palavras aladas:
Oh Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da Pátria... Ah! se conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!... Mas desejas voltar à esposa mortal, que habita na ilha áspera onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as Imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras.
O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros de Tróia, disse:
Oh Deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrósia divina! Em oito anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: “Foi culpa tua, mulher!” erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários!
Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de ouro vazia: e serenamente a Deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sobre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.
No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e se espalhava por sobre o Mar um vapor rúbido e dourado. Em breve os caminhos da Ilha se cobriram de sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem desejo, e a Deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.
Cedo, apenas Éos entreabria as portas do largo Ouranos, a divina Calipso, que revestira uma túnica mais branca que a neve do Pindo, e pregara nos cabelos um véu transparente e azul como o Éter ligeiro, saiu da gruta, trazendo ao magnânimo Ulisses, já sentado à porta, sob a ramada, diante duma taça de vinho claro, o machado poderoso de seu pai ilustre, todo de bronze, com dois fios e um rijo cabo de oliveira cortado nas faldas do Olimpo. Limpando ràpidamente a dura barba com as costas da mão, o Herói arrebatou o machado venerável:
Oh Deusa, há quantos anos não palpo uma arma ou uma ferramenta, eu, devastador de cidadelas e construtor de naves!
A Deusa sorriu. E, iluminada a lisa face, em palavras aladas:
Oh Ulisses, vencedor de homens, se tu ficasses nesta ilha, eu encomendaria para ti, a Vulcano e às suas forjas do Etna, armas maravilhosas...
Que valem armas sem combates, ou homens que as admirem? De resto, oh Deusa, já muito batalhei, e a minha glória entre as gerações está soberbamente segura. Só aspiro ao macio repouso, vigiando os meus gados, concebendo sábias leis para os meus povos... Sê benévola, oh Deusa, e mostra as árvores fortes que me convém cortar!
Em silêncio ela caminhou por um atalho, florido de altas e radiosas açucenas, que conduzia à ponta da Ilha mais cerrada de matas, do lado do Oriente: e atrás seguia o intrépido Ulisses, com o luzidio machado ao ombro. As pombas deixavam os ramos dos cedros, ou as concavidades das rochas onde bebiam, para esvoaçarem em torno da Deusa num tumulto amoroso. Um aroma mais delicado, quando ela passava, subia das flores abertas, como de incensadores. As relvas que a orla da sua túnica roçava reverdejavam num viço mais fresco. E Ulisses, indiferente aos prestígios da Deusa, impaciente com a serenidade divina do seu andar harmonioso, meditava a jangada, almejava pelo bosque.
Denso e escuro o avistou, enfim, povoado de carvalhos, de velhíssimas tecas, de pinheiros que ramalhavam no alto Éter. Da sua orla descia um areal a que nem concha, nem galho quebrado de coral, nem pálida flor de cardo marinho desmanchava a doçura perfeita. E o Mar refulgia com um brilho safírico, na quietação da manhã branca e corada. Caminhando dos carvalhos às tecas, a Deusa marcou ao atento Ulisses os troncos secos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sobre as águas traidoras. Depois, acariciando o ombro do Herói, como outra árvore robusta também votada às águas cruéis, recolheu à sua gruta, onde tomou a roca de ouro, e todo o dia fiou, e todo o dia cantou...
Com alvoroçada e soberba alegria, Ulisses atirou o machado contra um vasto carvalho que gemeu. E em breve toda a Ilha retumbava, no fragor da obra sobre-humana. As gaivotas, adormecidas no silêncio eterno daquelas ribas, bateram o voo em largos bandos, espantadas e gritando. As fluidas divindades dos ribeiros indolentes, estremecendo num fulgente arrepio, fugiam para entre os canaviais e as raízes dos amieiros. Nesse curto dia o valente Ulisses abateu vinte árvores, robles, pinheiros, tecas e choupos e todas decotou, esquadrou e alinhou sobre a areia. O seu pescoço e arcado peito fumegavam de suor, quando recolheu pesadamente à gruta, para saciar a rude fome e beber a cerveja gelada. E nunca ele parecera tão belo à Deusa imortal, que, sobre o leito de peles preciosas, apenas os caminhos se cobriram de sombra, encontrou, incansada e pronta, a força daqueles braços que tinham abatido vinte troncos.
Assim, durante três dias, trabalhou o Herói.
E, como arrebatada nessa actividade magnífica que abalava a Ilha, a Deusa ajudava Ulisses, conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos delicadas, as cordas e os pregos de bronze. As Ninfas, por seu mandado, abandonando as tarefas suaves, teciam uma tela forte, para a vela que empurrariam com amor os ventos amáveis. E a Intendenta venerável já enchia os odres de vinhos robustos, e preparava com generosidade os víveres numerosos para a travessia incerta. No entanto a ganjaga crescia, com os troncos bem ligados, e um banco erguido ao meio, de onde se empinava o mastro, desbastado num pinheiro, mais redondo e liso que uma vara de marfim. Cada tarde a Deusa, sentada numa rocha à sombra do bosque, contemplava o calafate admirável martelando furiosamente, e cantando, com rija alegria, um canto de remador. E, ligeiras, na ponta dos pés luzidios, por entre o arvoredo, as Ninfas, escapando à tarefa, acudiam a espreitar, com desejosos olhos fulgurantes, aquela força solitária, que soberbamente, no areal solitário, ia erguendo uma nave.

IV

ENFIM no quarto dia, de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas. Depois ajuntou um lastro copioso, com a terra da Ilha imortal e as suas pedras polidas. Sem descanso, numa ânsia risonha, amarrou à verga alta a vela cortada pelas Ninfas. Sobre pesados rolos, manobrando a alavanca, rolou a jangada imensa até à espuma da vaga, num esforço sublime, com músculos tão retesos e veias tão inchadas, que ele mesmo parecia feito de troncos e cordas. Uma ponta da jangada arfou, levantada com cadência pela onda harmoniosa. E o Herói, erguendo os braços lustrosos de suor, louvou os Deuses Imortais.
Então, como a obra findara e a tarde rebrilhava, propícia à partida, a generosa Calipso trouxe Ulisses, através das violetas e das anémonas, à fresca gruta. Pelas suas divinas mãos o banhou numa concha de nácar, e o perfumou com essências sobrenaturais, e o vestiu com uma túnica formosa de lã bordada, e lançou sobre os seus ombros um manto impenetrável às neblinas do mar, e lhe estendeu sobre a mesa, para ele saciar a fome rude, as comidas mais sãs e mais finas da Terra. O Herói aceitava os amorosos cuidados, com paciente magnanimidade. A Deusa, de gestos serenos, sorria taciturnamente.
Depois ela tomou a mão cabeluda de Ulisses, palpando com gosto os calos que lhe deixara o machado; e pela borda do Mar o conduziu à praia, onde a vaga mansamente lambia os troncos da jangada forte. Ambos descansaram sobre uma rocha musgosa. Nunca a Ilha resplandecera com uma beleza tão serena, entre um mar tão azul, sob um céu tão macio. Nem a água frescas do Pindo bebida em marcha abrasada, nem o vinho dourado que produzem as colinas de Quios, eram mais doces de sorver do que aquele ar repassado de aromas, composto pelos Deuses para o respirar duma Deusa. A frescura imorredoira das árvores entrava no coração, quase pedia a carícia dos dedos. Todos os rumores, o dos regatos na relva, o das ondas no areal, o das aves nas sombras frondosas, subiam, suave e finamente fundidos, como as harmonias sagradas de um Templo distante. O esplendor e a graça das flores retinham os raios pasmados do Sol. Tantos eram os frutos nos vergéis, e as espigas nas messes, que a Ilha parecia ceder, afundada no Mar, sob o peso da sua abundância.
Então a Deusa, ao lado do Herói, levemente suspirou, e murmurou num sorriso alado:
Oh, magnânimo Ulisses, tu certamente partes! O desejo te leva de rever a mortal Penélope, e o teu doce Telémaco, que deixaste no colo da ama quando a Europa correu contra a Ásia, e agora já sustenta na mão uma lança temida. Sempre dum amor antigo, com raízes fundas, brotará mais tarde uma flor, mesmo triste. Mas diz! Se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, oh homem prudente, esta doçuara, esta paz, esta abundância e beleza imortal?
O Herói, ao lado da Deusa, estendeu o braço poderoso, como na Assembleia dos Reis, diante dos muros de Tróia, quando plantava nas almas a verdade persuasiva:
Oh Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregar de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostrastes estes prados perpétuos: e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacàvelmente, o seu voo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras Harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da gruta, para não escutar o murmúrio sempre lânguido destes arroios sempre transparentes! Considera, oh Deusa, que na tua Ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh Deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento... Oh Deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre sua muleta, mendigando à porta das vilas... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura... Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh Deusa imortal, eu morro com saudades da morte!
Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a Deusa escutara, com um sorriso serenamente divino, o furioso queixume do Herói cativo... No entanto já pela colina as Ninfas, servas da Deusa, desciam, trazendo à cabeça, e amparando-os com o braço redondo, os jarros de vinho, os sacos de couro, que a Intendenta venerável mandava para abastecer a jangada. Silenciosamente, o Herói lançou uma tábua desde a areia até ao bordo de altos toros. E enquanto sobre ela as Ninfas passavam, ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios, Ulisses, atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos excelentes, todas as Ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal em torno da Deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras do Herói sobre o dorso das águas... Então uma cólera lampejou nos largos olhos de Ulisses. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços:
Oh Deusa, pensas tu na verdade que nada falte para que eu largue a vela e navegue? Onde estão os ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hóspede magnífico da tua Ilha, da tua gruta, do teu leito... Sempre os Deuses imortais determinaram que os hóspedes, no momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! Onde estão elas, oh Deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da Terra e lei do Céu?
A Deusa sorriu, com sublime paciência. E com palavras aladas, que fugiam na aragem:
Oh Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens. E também o mais desconfiado, pois que supões que uma Deusa negaria os presentes devidos àquele que amou... Sossega, oh subtil Herói... Os ricos presentes não tardam, largos e rebrilhantes.
E, certamente, pela colina suave, outras Ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnânimo Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores... E, enquanto elas passavam sobre a tabua rangente, o Herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrado, os escudos cravejados de pedras...
Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira Ninfa sustentava no ombro, que Ulisses deteve a Ninfa, arrebatou o vaso, o sopesou, o mirou, e gritou, com soberbo riso estridente:
Na verdade, este ouro é bom!
Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente Herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco dum roble, e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da Deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto:
Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...
Ulisses recuou, com um brado magnífico:
Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
E, através da vaga, fugiu, trepou sôfregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!

Eça de Queiroz