quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Uma Mulher

Ela estava no círculo familiar como as outras,
Folheando um livro de gravuras:
A noite nos cercava com seus abismos azuis
E a idéia de quase uma floresta próxima.

Alguém acendeu um candeeiro de petróleo,
As pessoas presentes recuaram no tempo.
Ela se levantou para abrir uma vidraça,
E muito branca, toda vestida de preto,
Seus movimentos ao mesmo tempo lentos e velozes,
Fizeram nascer
Fizeram nascer um começo de dançarina ou de gaivota,
Hélices mexendo, mãos a correr no teclado.
Quando sentou-se era outra vez a mulher.

Murilo Mendes

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Um Escólio

Ao fim de vinte anos de trabalhos e de estranha aventura, Ulisses filho de Laertes retorna a sua Ítaca. Com a espada de ferro e o arco executa a devida vingança. Atônita até o medo, Penélope não se atreve a reconhecê-lo e alude, para testá-lo, a um segredo que os dois compartilham, e apenas os dois: o de seu tálamo comum, que nenhum dos mortais pode mover, porque a oliveira com que foi lavrado o ata à terra. Esta é a história que se lê no livro vigésimo terceiro da Odisséia.

Homero não ignorava que as coisas devem ser ditas de maneira indireta. Tampouco o ignoravam seus gregos, cuja linguagem natural era o mito. A fábula do tálamo que é uma árvore é uma espécie de metáfora. A rainha soube que o desconhecido era o rei quando se viu em seus olhos, quando sentiu em seu amor que a encontrava o amor de Ulisses.

Jorge Luís Borges
Tradução: Josely Vianna Baptista
Fonte: BORGES, J.L. História da Noite in: Obra completa Volume 3 São Paulo: Globo, 1996.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Safo 137 L-P

quero dizer-te uma coisa, mas me tolhe
o pudor [

...

fosse, o teu, um desejo por algo nobre e bom
não te estalassem na língua umas palavras feias,
nenhum pudor velaria os teus olhos
[e o que é certo tu dirias]

Tradução: Joaquim Brasil Fontes

Fonte: FONTES, J.B. Eros, tecelão de mitos. São Paulo: Iluminuras. 2002.

domingo, fevereiro 07, 2010

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém
ninguém sabe, nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade

O amor bate na aorta

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Sherlock Holmes

Não saiu de uma mãe nem soube de ascendentes.
De Adão e de Quijano o caso é igual, decerto.
Está feito de acaso. Imediato ou ao perto,
regem-no os vaivéns de leitores diferentes.

Não é um erro pensar que nasce no momento
em que o vê aquele outro que dirá sua história
e que perece a cada eclipse da memória
de nós que o sonhamos. É mais oco que o vento.

Casto, nada sabe do amor. Foi seu intento.
Esse homem tão viril renunciou à arte
de amar. Em Baker Street vive sozinho e à parte.
Também é alheio a essa outra arte, o esquecimento.

Sonhou-o um irlandês, que não lhe teve afeto
e tentou matá-lo, ao que parece. Em vão.
Vai prosseguindo o homem só, lupa na mão,
sua estranha sorte instável de algo incompleto.

Não cultiva amizades, no entanto abençoa
a devoção ao outro, que foi seu evangelista
e que de seus milagres consignou a lista.
Vive de modo cômodo: em terceira pessoa.

Não vai mais ao banheiro. Tampouco visitava
esse retiro Hamlet, morto na Dinamarca
sem saber quase nada sobre essa comarca
da espada e do mar, do arco e da aljava.

(Omnia sunt plena Jovis. Do mesmo modo, à vera,
diremos desse justo que nome dá aos versos
que sua inconstante sombra percorre os diversos
domínios em que foi parcelada a esfera.)

Atiça na lareira as abrasadas ramas
ou extermina nos páramos um desses cães do inferno.
Esse alto cavalheiro não sabe que é eterno.
Resolve ninharias e repete epigramas.

Chega-nos de uma Londres de gás e de neblina,
da Londres que se sabe capital de um império
que pouco lhe interessa, a Londres de mistério
tranquilo, que não quer perceber que já declina.

Não nos maravilhemos. Depois da agonia,
o fado ou o acaso (que são a mesma coisa)
depara a cada um essa sorte curiosa
de ser ecos ou formas que morrem dia a dia.

Que morrem até um dia final em que o olvido,
que é a meta comum, esqueça-nos de todo.
Antes que nos alcance, brinquemos com o lodo
de ser durante um tempo, de ser e de ter sido.

Dos bons costumes que nos restam um é pensar
tarde após tarde em Sherlock Holmes. A morte
e a sesta são outros. Também é nossa sorte
convalescer em um jardim ou a lua contemplar.

Jorge Luis Borges


Tradução: Josely Vianna Baptista
Fonte: BORGES, J.L. Jorge Luis Borges, Obras Completas, volume 3. São Paulo: Globo, 1999.